segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

    Aproveitar o tempo ! Viver a vida.



    Aproveitar o tempo!
    Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
    Aproveitar o tempo!
    Nenhum dia sem linha...
    O trabalho honesto e superior..
    O trabalho à Virgílio, à Mílton...
    Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
    É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

    Aproveitar o tempo!
    Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -
    Para com eles juntar os cubos ajustados
    Que fazem gravuras certas na história
    E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
    Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
    E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
    E a vontade em carambola difícil.
    Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -
    Imagens da vida, imagens das vidas.
    Imagens da Vida.+

    Verbalismo...
    Sim, verbalismo...
    Aproveitar o tempo!
    Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
    Não ter um acto indefinido nem factício...
    Não ter um movimento desconforme com propósitos...
    Boas maneiras da alma...Elegância de persistir..
    Aproveitar o tempo!
    Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
    Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
    Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.

    Aproveitar o tempo!
    Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
    Aproveitei-os ou não?
    Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!
    (Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
    No comboio suburbano,
    Chegaste a interessar-te por mim?
    Aproveitei o tempo olhando para ti?
    Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
    Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
    Qual foi a vida que houve nisto?
    Que foi isto a vida?

    Aproveitar o tempo!
    Ah, deixem-me não aproveitar nada!
    Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
    Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
    A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
    O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
    O pião do garoto, que vai a parar,
    E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
    E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

    Álvaro de Campos
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